artigo publicado por Morris Kachani no Estadão
Dia 04 de junho de 2019 | 08h04
Perguntas a Lia Diskin, do Instituto Palas Athena, é uma grande estudiosa sobre meditação
Recentemente, li uma frase de Lama Rimpoche, “A Paz interna é a base mais sólida da Paz mundial”.
Lia Diskin, cofundadora do Associação Palas Athena, coordenadora das visitas de Dalai Lama ao Brasil, premiada por sua contribuição na área de Direitos Humanos e Cultura de Paz recebido da Unesco, estudiosa dos Upanixades na Índia e dos saberes tibetanos, professora especializada em práticas medidativas, certamente concordaria.
Pesquisando os caminhos de Lia, encontrei no site do Museu da Pessoa, as seguintes informações:
Lia Diskin é o apelido de Leonor Beatriz Diskin Pawlowicz, nascida em Buenos Aires, na Argentina, em 1950. Descendente de russos e búlgaros, Lia viveu uma infância marcada pela ausência de ensinamentos religiosos e por eterno fascínio pelos mistérios espirituais que seus colegas e amigos vivenciavam.
Ainda jovem, cursou a faculdade de Jornalismo e se casou, mas o clima tenso da ditadura militar na Argentina e o desejo de viver novas experiências a levaram a imigrar para o Brasil. Estabelecida em São Paulo, teve um contato mais próximo com as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, com estudos filosóficos e religiosos. Com o marido, Basílio, fundou um centro de acolhimento de crianças órfãs e também a Associação Palas Athena, que tem como uma das linhas de trabalho a valorização da cultura de paz.
Qual seria o objetivo de se praticar a meditação?
Familiarizar-se com a própria mente – seus conteúdos, processos, padrões de resposta e espaços de acesso a uma realidade mais ampla, livres do hábito e das respostas já conhecidas.
Quando se coloca a experiência meditativa em um contexto histórico, remontamos a uma época em que os desafios da sobrevivência ficaram amenizados. Isto é, a criação das cidades viabilizou o abrandamento dos mecanismos focados na busca do alimento, na luta por alimento, na fuga de possíveis predadores e na procriação compulsiva. Esse acontecimento ocorreu uns 15 mil anos atrás.
Quando a sobrevivência deixa de ser um imperativo que consome todas as energias e o tempo, emerge um espaço para a contemplação e descoberta. O período mais fértil para essa atividade acontece, segundo Karl Jaspers (filósofo alemão), entre 900 a 200 aC. Jaspers denomina esse período Era Axial, quando se estruturam e desenvolvem as grandes tradições espirituais que perduram até hoje – o berço dessas tradições foram a China, a Índia, o Oriente Médio e a Grécia Antiga.
O princípio da reciprocidade está na base de sustentação de qualquer relação.
É bom para a saúde?
Sem dúvida. Se nos entendemos como uma unidade de vida que integra corpo e mente, a saúde experimentada como bem-estar, autoconfiança, potência e criatividade impregna a totalidade do humano.
Hoje há inúmeros estudos sobre o impacto de um equilíbrio bio-psico-social provocado por práticas de caráter meditativo.
Por que a meditação envolve valores éticos?
Nenhum de nós é fruto de si mesmo. Nascemos em uma família, em uma sociedade, em uma cultura, em um território do qual absorvemos suas variáveis. O que sei, aprendi de alguém com alguém. Desse modo, sou depositária de incontáveis contribuições que me tornaram o que sou. O princípio da reciprocidade está na base de sustentação de qualquer relação.
Se meu modo de ser e estar no mundo é hostil, é predatório, necessariamente terei que estar em prontidão para receber hostilidade e vingança. Não há espaço interno para cultivar a calma, a serenidade, a empatia ou mesmo a amizade.
Ambição, autoritarismo, inveja, apropriação indébita criam uma atmosfera incompatível com o que se almeja cultivar no escopo da meditação.
Qual a diferença entre a atenção e a prática medidativa?
A atenção é o primeiro requisito para meditar. Se não conseguimos manter a mente direcionada a um propósito (seja qual for a técnica que se use), se a agitação e dispersão campeiam sem governança, é impossível reunir em um eixo as energias que dispomos – não há poder.
Sem governança, é impossível reunir em um eixo as energias que dispomos.
Entretanto, é importante salientar que sem atenção não há capacidade de realizar nenhuma atividade de maneira apropriada. Tocar um instrumento, aprender um idioma, cozinhar ou manter uma conversa honesta, exigem atenção.
Qual a importância da respiração?
A respiração responde muito rapidamente aos estados emocionais, e poderíamos chegar a dizer que é possível avaliar se alguém está agitado, deprimido ou calmo pelo ritmo respiratório que apresenta.
A respiração abdominal, muito recomendada na escola Yoga, é a que está presente na maioria das cartografias meditativas do Oriente. Promove conforto, presença, harmonia energética e, por decorrência, serenidade e estabilidade mental.
Como lidar com o medo e com a ansiedade? Com pensamentos que nos torturam?
Medo e ansiedade são parte da arquitetura de sobrevivência de todos os seres vivos. O medo – fruto da experiência acumulada – cria mecanismos de proteção sem os quais a fragilidade da vida não teria recursos para progredir. A ansiedade antecipa uma situação/circunstância que ainda não chegou ao presente; é uma estratégia antecipatória que antevê as possíveis variáveis com o propósito de controlar o que seria indesejável, ameaçador e prejudicial.
Portanto, o problema com o medo e a ansiedade é quando se tornam “um problema”. Quando ganham espaço em nosso imaginário e agigantam uma possível ameaça, fazendo disparar uma torrente de sensações e pensamentos negativos que provocam alterações fisiológicas. No caso do medo, hoje sabemos que o sangue vai para os músculos do esqueleto, as pernas sobretudo, habilitando o corpo para a fuga.
O primeiro passo para lidar com pensamentos torturantes é reconhecê-los. Tornar-nos conscientes da sua presença. Isso cria um distanciamento que, usando respiração profunda, abdominal ou ritmada, prolongando o período de exalação, permite amenizar o poder que exercem sobre nós.
Como se medita?
Há centenas de práticas meditativas, provenientes de diferentes tradições espirituais. Cada uma conduz o praticante a um objetivo que pode ir, do cultivo da atenção plena à compaixão altruísta ou identificação com um princípio sagrado, divindade ou potestade.
É possível meditar no ônibus? Ou contemplando a natureza? Uma obra de arte?
De fato, um ônibus não é o melhor local para se meditar, devido ao fato de haver uma infinidade de estímulos sensoriais e comportamentos que levarão a atenção de um lado para outro. Entretanto, um praticante experiente pode usar o cenário mutável de maneira incessante para meditar sobre a impermanência.
A natureza, e é bom lembrar que nós somos natureza, promove um senso de estabilidade harmoniosa, sobretudo se tiver vegetação ou águas calmas.
Quanto a uma obra de arte, ela pode provocar um enlevo estético ou despertar emoção – tudo vai depender da obra que se contempla e da sensibilidade do expectador.
A mente em branco seria o nirvana?
Não existe mente em branco, sempre haverá alguma representação de caráter emocional, sensorial intelectual, intuicional. É necessário não confundir a meditação sobre a vacuidade com o torpor, isto é, o esmaecimento das faculdades lúcidas da mente.
Nirvana, samadhi, êxtase, fazem referência à extinção do desejo, das paixões, da ilusão criada pela ignorância, que distorcem a percepção da realidade.
Em suas palestras, você fala sobre governabilidade da atenção, sobre integrar as diversas dimensões, sobre o viver aqui e agora. Cita que muitas vezes, “o corpo está em um lugar, e a mente em outro”. Penso por exemplo no desafio de como lidar com o celular. Por exemplo, ficar tweetando o dia todo, ou postando imagens no Instagram.
Para adentrar nessa questão, é recomendável distinguir o que clinicamente se chama de transtorno de déficit de atenção (TDA), caracterizado pela passividade, lassidão, letargia, incapacidade de manter um foco naquilo que se faz, e o que se denomina hiperatividade, quando a mente pula compulsivamente de um objeto/pensamento/emoção/sensação para outro, divagando excitada, agitada e distraída. Estas duas tendências disfuncionais são uma das queixas mais frequentes nos dias de hoje – sobretudo entre crianças e jovens. E podem ocorrer em alternância na mesma pessoa, o que tipifica o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), via de regra tratado com medicamentos que, desnecessário dizer, enriquecem financeiramente os fabricantes dessas drogas consumidas de modo abusivo no mundo todo, mas de forma exponencial nos Estados Unidos.
A era digital cria uma avalanche de informações que não estavam disponíveis para o comum dos mortais duas décadas atrás. Nossa avidez para estar “informado”, para estar “conectado”, nos carrega de uma vitrine para outra nas mídias sociais, sem trégua ou pausa, provocando exaustão e frustação, porque não conseguimos acompanhar a velocidade das ofertas e demandas. Herbert Simon – cientista cognitivo — ressalta que “O que a informação consome é a atenção. Riqueza de informação significa pobreza de atenção.”
Pesquisas em curso sinalizam algumas das consequências mais evidentes desta corrida para ganhar velocidade: distanciamento empático com perda das habilidades humanas básicas para sustentar relacionamentos afetivos duradouros, e desintegração do senso de comunidade, que resulta em anonimato e invisibilidade social, o que, por vez e não poucas vezes, conduz à depressão.
Você acha que o formato de se trabalhar ou estudar de segunda a sexta ou sábado, em horários definidos, ajuda ou atrapalha a concentração? Viver de acordo com esta agenda não pode de certa forma contradizer com o metabolismo de nosso próprio corpo?
O equilíbrio entre trabalho/estudo/descanso é um imperativo para a manutenção da saúde – tanto física quanto psicológica e espiritual.
Acredito que parte da sensação de exaustão que tomou conta da sociedade moderna é termos acreditado que “o céu é o limite”. Não, biologicamente estamos na Terra, e ela impõe regras, normas, procedimentos, ritmos… o pulsar da vida em permanente renovação. Confúcio tem uma frase que pode nos auxiliar a recuperar a mesura, a moderação e, com elas, o desfrute da vitalidade, a alegria de usufruir o que cada dia nos oferece. O pensamento dele é: “Nada é o bastante para quem considera pouco o que é suficiente.”
O mantra hoje tem de ser “Simplificar”, por fora e por dentro. Abrir mão do supérfluo, do excesso, do artificioso e do que busca impressionar. No final das contas, a vida não é um teatro no qual tenho de representar a mim mesmo de forma tal que arranque aplausos acalorados por parte dos que me conhecem. Estar em evidência, lutar por reconhecimento, ter milhões de “amigos”, é uma maneira precária de se sentir querido, seguro e confiante.
Riqueza de informação significa pobreza de atenção.
Quais seriam os tipos de silêncio?
Para Santa Teresa de Ávila, há que se conquistar 3 silêncios: o dos desejos, que nunca são satisfeitos pelo fato de, nem bem atendermos um, já nasce um outro – é próprio da estrutura do desejo ser insaciável. O silêncio dos apegos e sua contraparte das rejeições, que rotulam pessoas e situações de modo indiscriminado. Por último, o silêncio da busca das recompensas, das premiações espirituais, das condecorações no céu. A falta deste último silêncio provoca autoenfatuação, soberba espiritual, arrogância, acreditar que se é especial aos olhos de Deus e, portanto, o que se diz ou se faz já está sacralizado antecipadamente.
Você é estudiosa de filosofias orientais. Poderia mencionar os textos de que mais gosta e por que?
Os diálogos registrados nos Upanixades revelam uma época de grandes descobertas. Estamos falando do período védico na Índia, por volta do século VIII a.C., quando o foco das reflexões passa do mundo dos deuses para o da consciência humana, para a autoanálise sistemática, para a experimentação de técnicas introspectivas que originaram séculos mais tarde as cartografias da meditação.
Outro texto significativo para mim é o Dhammapada, onde estão compilados os ensinamentos éticos e disciplinários de Buda. É uma antologia de ditos, máximas, em versos, que inspiram budistas e não budistas a trilhar os caminhos da não violência, do autocontrole, da bondade em relação a todos os seres, e a compaixão.
Mais uma fonte que desejo destacar por sua influência em meu pensamento, são os escritos do filósofo chinês Chuang-Tsu – possivelmente o mais irreverente dos pensadores da China clássica.
Qual seria a contribuição do saber tipicamente brasileiro nesse contexto?
Não saberia dizer. Penso que ainda é cedo para consolidar uma experiência meditativa tipicamente brasileira.
Como a psicanálise se entrelaça com toda esta construção? Seria a meditação mais efetiva?
A psicanálise, e mais especificamente a metodologia proposta por Freud para a abordagem do espaço da psique humana, foram todos revolucionários, abrindo uma compreensão sobre nós mesmos que não estava disponível no Ocidente antes dele. Jung ampliou ainda mais esse cenário, possibilitando releituras ad infinitum. Mas é bom lembrar que o propósito da psicanálise é terapêutico, isto é, promover e ajustar no paciente o que hoje o impede viver de maneira satisfatória e confiante.
As práticas meditativas podem contribuir, por exemplo, para atenuar índices de ansiedade, de distúrbios do sono, de insegurança, ou adição química ou alcoólica. Podem também – há inúmeros artigos científicos comprobatórios – reduzir o estresse, amenizar dores crônicas, cardiopatias leves, etc. Contudo, o objetivo dessas práticas é a vida espiritual, ampliar a percepção de si próprio e da realidade a que temos acesso; estabelecer conexões empáticas com todos os seres vivos; em síntese, sacralizar o nosso cotidiano.
Como está o Dalai Lama? Por onde tem transitado sua intuição? O que ele tem falado sobre o Brasil?
Sua Santidade o Dalai Lama está empenhado em que a educação das futuras gerações nutra as qualidades da compaixão e da sabedoria. Isso atenderia à necessidade natural e universal de sermos felizes e, para tal, temos de propiciar felicidade aos outro