Meu interesse pelos textos do Hatha Yoga surgiu quando comecei a estudá-los sistematicamente sob a orientação do Dr. Manohar Laxman Gharote, na Índia. Fiz a tradução e os comentários depois de vários anos de ensinamento na cátedra de Teoria e Prática de Técnicas do Yoga III na Escuela de Estudios Orientales de la Universidad Del Salvador da Argentina e nas Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo (FMU), Brasil. Espero que seja de utilidade para meus alunos e para toda pessoa estudiosa desta disciplina. Este pequeno resumo do Gheranda Samhita é só para aguçar a curiosidade do leitor.
Entrando na caverna habitada pelo mestre Gheranda, o discíulo Candakapali o saúda e logo diz: – “Oh senhor, tu que és o maior dos yoguis, me ensine mais sobre o Yoga que nos leva ao conhecimento da Realidade”. Gheranda lhe responde: – “Muito bem, alma corajosa. Já que me perguntaste, escuta atentamente o que vou te dizer. Não há prisão maior do que maya (ilusão); não há inimigo pior do que o egoísmo e não há poder maior do que a disciplina do yoga.” “Assim como devemos primeiro aprender o alfabeto para podermos ler os textos sagrados, também devemos dominar gradativamente as técnicas do yoga para obter o conhecimento da Realidade”. “O nosso corpo é como uma vasilha de barro crua, que ao ser colocada na água se desintegra. Por isso, nós devemos nos submeter ao fogo do yoga para nos fortalecermos e nos purificarmos”.
O yoga apresentado no Gheranda Samhitâ é um sistema completo. Não é simplesmente físico. Aquele, cuja mente vai se clareando progressivamente começa a ver a unidade e inter-relação das práticas. Em comparação ao Hatha Pradipikâ o Gheranda Samhitâ é um texto mais sistemático, com uma apresentação muito clara, fornece mais de cem práticas, é muito útil para os estudantes e praticantes. São encontradas certas influências vedânticas em alguns versos. Enfatiza-se o aspecto psicológico e espiritual das práticas.
O caminho do conhecimento, segundo o Gheranda Samhitâ
A unidade psicofísica (corpo sutil que transmigra) é responsável pelas ações que determinam o futuro renascimento, mas essa cadeia pode ser interrompida ou modificada através da prática do yoga. Isto indica a liberdade do homem de poder modificar-se através de suas ações.
As sete disciplinas ou ações para o treinamento através do corpo, segundo o mestre Gheranda, são:
• purificação (śodhana),
• fortalecimento (drdhatâ),
• firmeza (sthairyam),
• calma (dhairyam),
• leveza (lâghavam),
• realização ou percepção direta (pratyaksam) e
• isolamento (nirliptam).
As relação destas ações com seu efeito são:
• os kriyas (satkarmas) purificam o corpo,
• os âsanas o fortificam,
• os mudrâs lhe dão firmeza,
• pratyâhâra produz calma,
• os prânâyâmas levam à leveza,
• dhyâna leva à realização do ser e
• samâdhi leva ao isolamento que é a verdadeira a Libertação (mukti).
Sendo o objetivo do yoga chegar ao estado de libertação através da purificação da mente, o yoga parte do corpo sem descuidar do comportamento, saúde e emoções do praticante.
No primeiro capítulo, o Gheranda Samhita descreve vinte e um kriyâs (processos de purificação) bastante elaborados. O objetivo é sempre espiritual, por exemplo:
– Karma dhauti (a limpeza do conduto auditivo) outorga possibilidade de escutar sons místicos despertados internamente.
– Bhâlarandhra (a limpeza do palato com o dedo polegar) possibilita a clarividência.
Pode-se limpar os distintos órgãos internos e partes do corpo com ar, fricção ou através movimentos manipulatórios. Estes processos, segundo a região purificada podem ser classificados em:
Naso-faríngeo-áudio-cranianos;
Região gastro-esofágica e
Região ano-reto-intestinal.
Exercitando e aplicando estímulo de pressão aos músculos e nervos ao redor de uma área conseguem-se os necessários tônus e vigor. Assim pode-se curar distúrbios e enfermidades, aumentando o fogo gástrico, retardando o envelhecimento e conferindo ao praticante melhor saúde e beleza. A aplicação clínica dos kriyas é muito confortadora. No entanto seus valores terapêuticos ainda não foram suficientemente investigados.
No segundo capítulo, Gheranda diz à seu discípulo: – “Existem 84 milhões de asanas descritos por Shiva ou tantos asanas como espécies de animais sobre a terra. Destes, apenas 84 são considerados importantes e dentre eles 32 se destacam como muito bons neste mundo de seres mortais”. Em seguida o texto descreve os 32 asanas começando por siddhasana (uma postura de meditação) afirmando que por sua prática se abre as portas da liberação.
O terceiro capítulo se destina aos mudras. São descritos vinte e cinco mudras.
O termo mudrâ provém da literatura tântrica e tem diferentes significados:
a) postura do corpo,
b) posição particular de mãos e dedos,
c) grãos tostados,
d) mulher associada com as práticas tântricas.
e) também significa “selo”.
O termo mudrâ é formado por “mud” e “ra”. “Mud” é desfrutar ou ser feliz e “ra” é dar, segundo o Sarada Tilada, texto tântrico. Os comentaristas deste texto interpretam que mudrâ dá uma sensação de bem estar. Houve grande influência dos mudrâs em rituais, teatro e dança indianos. Mas aqui nos referimos a seu sentido no hatha yoga.
Os mudrâs utilizados na prática do prânâyâma são os denominados genericamente bandhas e canalizam o prânâ numa direção determinada.
Do ponto de vista fisiológico, os mudrâs tratam de controlar conscientemente certos músculos semi-voluntários, como os esfíncteres anais, o diafragma, músculos da garganta, olhos etc. Nestes músculos há integração do sistema nervoso central e do sistema nervoso autônomo, que funcionam como uma unidade.
Outro aspecto importante é a manipulação de pressões internas, tanto positivas como negativas, que tonificam os órgãos ajudando a descongestioná-los. A prática de mudrâs durante um longo tempo equilibra e dá maior controle sobre as atividades autônomas. Os mudrâs ocupam um lugar de destaque neste texto dentro de um forte contexto espiritual, indicando que somente poderão ser aprendidos sob a orientação de um guru. Combinam todos os elementos das práticas yóguicas desde âsana, passando pelo controle respiratório, a concentração e a meditação, até chegar ao samâdhi.
Este capítulo apresenta, além dos mudrâs, os três bandhas essenciais.
Os mudrâs são o aspecto interno dos âsanas e estão relacionados de certa forma com o prânâyâma. O controle interno leva à libertação do complexo corpo-mente. Os mudrâs outorgam oito siddhis (poderes):
animan (poder de fazer-se menor),
mahiman (de fazer-se gigante),
gariman (de obter peso),
laghiman (de fazer-se leve),
prâpti (de chegar aos objetos mais longínquos),
prakamya (de obter tudo o que é desejado),
îśita (de transformar o que se deseja) e
vaśitva (de controlar tudo).
Estes siddhis indicam um certo nível de controle somente em relação ao mundano e podem ser impedimentos no caminho espiritual. Se estas técnicas forem realizadas adequadamente, serão o ponto de encontro de todas as práticas yóguicas. Em outras traduções do Gheranda Samhitâ como ‘Science of Yoga’ de Parvrajka o simples conhecimento dos mudras já outorga todos os siddhis: “Mantenha-os sempre em segredo e nunca dê este conhecimento a ninguém”.
O quarto capítulo é destinado ao PRATYÂHÂRA
Estar no âsana, com a respiração rítmica e harmoniosa, não significa que todo o movimento mental tenha cessado. Pelo contrário, afirma-se nos textos que as distrações aumentam em qualidade, tornando-se mais insistentes, e em quantidade expandindo o interesse a um maior número de objetos.
Os sentidos adquirem maior eficácia, quando a mente se liberta dos desejos relacionados às demandas corporais. Por isso, pratyâhâra está relacionado com os órgãos dos sentidos. É comparada à tartaruga, que pode voluntariamente levar seus membros para dentro do casco. É a mente que deve empenhar-se para alcançar pratyâhâra.
Se o yogui consegue controlar os órgãos dos sentidos, a possibilidade de distração externa desaparece.
O sábio Gheranda diz: – “Agora exporei o excelente Pratyâhâra, cujo conhecimento destrói inimigos, como o desejo”.
Esta é a lição mais curta do texto e talvez a mais difícil de aprender: o domínio dos sentidos.
No quinto capítulo, Gheranda diz: – “Agora vou expor as regras do pranayama. Por sua prática, o homem pode se parecer com um deus”. Em seguida diz que a prática deverá ser feita em um país próspero, onde se obtenha facilmente esmolas, com um governante justo, onde não haja moléstias, deve-se construir uma cabana num lugar seguro e isolado.
Afirma que os pré-requisitos para a prática do prânâyâma são:
1) lugar adequado
2) momento adequado
3) alimentação adequada
4) purificação dos nâdis.
Descreve oito prananayamas que chama de kumbhakas.
O sexto e o sétimo capítulos, se referem respectivamente à Dhyana e Samâdhi. Neste caminho, exploram-se todas as fases da consciência. Consegue-se a qualidade do desapego e em seguida a liberação. Samâdhi é tanto um processo, como seu resultado. Como processo, é uma intensa concentração mental livre de todo samkalpa (propósito) e livre de apego ao mundo. Como resultado, é a união de jîva (ser individual) com paramâtman (ser universal).
O yogui, em samâdhi, entra completamente em si mesmo, “vai estabelecer sua residência no lótus de seu próprio coração” como dizem os Upanisads:.
O místico é um homem que vive neste mundo e viaja através dos três mundos. Enquanto o yogui não se desloca e sim se imobiliza por extinção de tudo o que produz movimento: instinto, atividade corporal e mental.
Em samâdhi, o yogui está totalmente recolhido em si próprio, até não ser mais que um germe diminuto no mais íntimo de si mesmo. O samâdhi no hatha yoga acontece quando kundalinî, havendo reconhecido sua verdadeira natureza divina, une-se a Śiva.
Há a extinção da personalidade; o yogui transcende os três mundos e mora em brahmaloka. Pode ou não morrer nesse instante, transformou-se em um jîvanmukta (liberado em vida).
Assim são apresentadas por Gheranda as setes ações espirituais no caminho da Libertação.
Em seu aspecto mais antigo, o Yoga foi concebido como uma técnica para aumentar os poderes vitais. Este aspecto foi desenvolvido e aperfeiçoado posteriormente pelo Hatha Yoga com a introdução de práticas para controlar os efeitos e impactos da natureza.
O significado da palavra Hatha modifica-se com o tempo. No Mahabharata, é utilizada no sentido de ausência de esforço. No Amarakośa e no Yoga Vaśistha, significa força. Na literatura dos natha yogins “ha” refere-se a Surya (sol) e “tha” a Candra (lua) e sua união denomina-se Hatha Yoga. Surya e candra são também sinônimos dos nâdîs pingalâ e îda, respectivamente. São também representações simbólicas de prâna e apana e sua união no pranayama é um ponto característico do Hatha Yoga. No texto Yoga Bija, 89-90: “A união de prana e apana, ou a do princípio feminino com o princípio masculino, ou a do sol com a lua, de jivâtman e paramâtman, em síntese, a fusão de todos os pares de opostos, denomina-se Yoga”. Este conceito de Yoga se adequa aos ensinamentos dos textos do Hatha Yoga que apresentam o Çakti Yoga ou Prana Samyama Yoga.
Alicia Souto: professora de Yoga formada pela escola de Kaivalyadhama (Índia) e ex-presidenta da Associação Sul Americana de Eutonia. Professora do Departamento de Estudos Orientais da Universidade de Salvador (Argentina). Fundadora do Centro de Eutonia e YogaTerapia em Buenos Aires. Professora de textos clássicos do HathaYoga na FMU (São Paulo).
Marcos Rojo
Alicia Souto (tradução adaptada por Marcos Rojo)